Como formigas a trabalhar para o formigueiro



Li no outro dia, atribuído ao Dalai Lama, o pensamento reprovador de que os homens vivem como se não fossem morrer e acabam por morrer como se nunca tivessem vivido.
Entre uma coisa e a outra os moralistas dos séculos XVII e XVIII interpuseram algo que Hegel imortalizou com o rótulo "astúcia da Razão", um artifício interpretativo hipostaziado, através do qual se apreciaria o efeito colectivamente benéfico da alienação individual.
A alienação, constatavam os moralistas-filósofos nas suas visões deterministas sobre a natureza humana, é indispensável para que o homem sobreviva e prospere colectivamente. Se o homem se apercebesse, com prematura sabedoria, do facto de a vida terminar numa radical inutilização e de toda a riqueza acumulada em vida não poupar ninguém da decadência e da morte, veria o absurdo do esforço e a natureza pírrica de todo o triunfo – e cairia, por isso, na contemplação e na indolência, contente, resignado com a pobreza resultante da sua sábia improdutividade.
Por isso, concluíam racionalistas e iluministas, o destino impele ardilosamente os homens para ilusões e sonhos que lhes convocam todo o esforço, diuturnamente, por vidas inteiras – e só ao crepúsculo lhes desvenda a futilidade do esforço, a sua fundamental irrelevância para o último e verdadeiro resgate que conta para o indivíduo, ou mesmo torna claro o quanto é o próprio esforço a acelerar a vinda desse crepúsculo.
O moralista Adam Smith multiplica-se em advertências: “estás sinceramente disposto a nunca trocar a tua liberdade pela servidão dourada da corte, e viver antes livre, sem medo, e independente? Parece haver uma via para perseverar nessa resolução virtuosa; mas talvez uma única via. Nunca entres no palácio do qual tão poucos tiveram ânimo para regressar; nunca penetres no círculo da ambição [...] o filho do homem pobre, que a ira dos céus minou com a ambição, mal começa a olhar à sua volta logo admira a condição dos ricos [...] ele fica encantado com a ideia distante dessa felicidade. Ela aparece na sua imaginação como a vida de seres de uma espécie superior, e, com o fito de a alcançar, dedica-se perpetuamente à prossecução da riqueza e da grandeza [...] por toda a sua vida perseguirá a ideia de um certo ócio artificial e elegante ao qual poderá nunca chegar, pelo qual sacrifica a verdadeira tranquilidade que está sempre ao seu alcance, e do qual, se na extremidade da velhice conseguir por fim alcançá-lo, descobrirá não ter quaisquer vantagens sobre aquela segurança e contentamento humildes que por causa dele abandonou” (Teoria dos Sentimentos Morais).
Mas o economista Adam Smith, muito ao contrário, reconhece que é o motor do egoísmo que apoia o caminho para a riqueza das nações – sendo que o egoísmo é também alienação, quando assenta na desconsideração do desfecho inevitavelmente pírrico do trabalho em cada destino individual, quando assenta na sofreguidão de ilusões que só deixam de ser ilusões a um outro nível, mais vasto.
A contradição aparente é resolvida, ainda antes da solução determinista hegeliana, com um nebuloso conceito kantiano, de «sociabilidade insociável dos homens», algo que decerto tem a ver com a irredutibilidade proto-libertária do subjectivismo moral, mas algo também que pouco antes de crismado é esboçado como a tese de que “no homem (como única criatura racional sobre a terra), as disposições naturais que visam o uso da sua razão devem desenvolver-se integralmente só na espécie, e não no indivíduo” (Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita).
O que, dito com a possível singeleza, significa que a bem da espécie não só é preciso que continuemos a viver ignorando a morte (julgando-nos até livres dela), mas também que nos deve ser vedado descobrirmos prematuramente, ou seja muito antes da morte, que há outras formas, e formas mais sábias, de viver.
Temos primeiro que viver as determinações da nossa espécie, a bem da espécie; só quando a espécie está preservada, perpetuada, é que tardiamente nos apercebemos da insignificância, perante ela e dentro dela, dos nossos destinos individuais.

1 comentário:

  1. Talvez que se nos apercebessemos mais cedo dos nossos destinos individuais, a visão colectiva mudasse para algo diferente de um simples formigueiro servido por indivíduos alienados...

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